Dr. Fantástico: sátira sobre o apocalipse nuclear

Cena do filme Dr. Fantástico
Dr. Fantástico: filme de Stanley Kubrick

É O QUE DÁ CONFIAR NOS TECNOCRATAS!

No início da década de 1960, a humanidade estava atordoada com a possibilidade de uma guerra nuclear iminente. A crise dos mísseis em Cuba, em 1962, produziu a sensação de que estávamos a poucos passos de cair num precipício imensurável, com um rio de puro horror apocalíptico borbulhando lá embaixo. Diante disso, o que deveria fazer um cineasta antenado com seu tempo e empenhado a realizar o cinema mais relevante que esteja ao seu alcance? Stanley Kubrick não pensou duas vezes: leu tudo o que havia disponível sobre guerras nucleares e aprofundou-se o mais que pode. Até tropeçar no romance Red Alert, escrito pelo ex-oficial da RAF Peter George, em 1958.
        Criando uma ficção séria e grave, o autor mostra como seriam os bastidores de uma eventual guerra nuclear e revela como seria ridiculamente fácil deflagrá-la. Outros autores fizeram o mesmo, como Eugene Burdick e Harvey Wheeler, que escreveram Fail-Safe, um romance muito parecido, que rendeu um processo de plágio movido por Peter George, com posteriores acordos nos tribunais. Mas Kubrick não se importou com nada disso. O texto que encontrou em Red Alert serviu apenas como base para o seu filme Dr. Fantástico, realizado em 1964. Percebendo que o tema era absurdamente tresloucado para ser tratado com seriedade, fez mudanças profundas na hora de escrever o roteiro. Decidiu realizá-lo como uma comédia – aliás, uma das sátiras mais ácidas e mordazes de todos os tempos.
        Dr. Fantástico, portanto, começou a nascer como um filme circunspecto, mas a perspicácia de Kubrick levou a história na direção oposta. O diretor concebeu uma narrativa absurda, protagonizada por personagens caricatos, mas plausíveis, que se levam totalmente a sério e estão embriagados em devaneios egocêntricos e inconsequentes. Para ajudá-lo no roteiro, Kubrick convocou o aclamado escritor Terry Southern, dono de um humor refinado, que depois escreveria também os roteiros de Barbarella e Sem Destino. A dupla embarcou com gosto na história repleta de humor negro e escreveu quatro personagens para serem interpretados por Peter Sellers, que no final das contas, ficou com apenas três – a presença do ator britânico em vários papéis foi uma das condições para que o filme fosse financiado.
        Antes de entrar nos detalhes do filme, vamos examinar a sinopse: Dr. Fantástico conta como o general da força aérea americana Jack D. Ripper (Sterling Hayden), tomado pela paranoia, ordena ao capitão Lionel Mandrake (Peter Sellers) que ponha a base em alerta e emita uma ordem de ataque à União Soviética. Simples assim! Seguindo rígidos protocolos, que só podem ser revogados pelo general enlouquecido, os bombardeiros B-52 armados com bombas nucleares partem para cumprir a missão. Então, numa tal de Sala de Guerra do Pentágono, o general Buck Turgidson (George C. Scott) informa o presidente Merkin Muffley (Peter Sellers), que reúne o alto comando para resolver a crise.
        Diante da impossibilidade de decifrar os códigos e trazer os aviões de volta, a primeira opção é deixar os alvos serem atacados... Talvez os comunistas levem a pior! Mas então os militares descobrem que os vermelhos criaram uma máquina apocalíptica, pronta para responder ao ataque automaticamente. O resultado seria a destruição total da Terra. O próprio conselheiro científico do presidente, o ex-nazista Dr. Fantástico (Peter Sellers), aprisionado a uma cadeira de rodas, parece não ter soluções geniais escondidas na manga. Numa tentativa desesperada, convocam o embaixador soviético Alexei de Sadeski (Peter Bull) para a Sala de Guerra, que telefona para o primeiro-ministro na famosa linha direta. Enquanto os poderosos confabulam inutilidades, um bombardeio comandado pelo major King Kong (Slim Pickens) segue implacáveis, rumo ao fim do mundo!
        O roteiro de Dr. Fantástico é brilhante. Terry Southern soube capturar o frio e cínico jargão dos militares, que se valem de eufemismos para falar de mortes humanas com assombrosa banalidade. Temperou as cenas com incontáveis alusões sexuais e símbolos fálicos, para falar da importância do poderio militar que embriaga todos os personagens. Deixou escrachada a inutilidade dos tecnocratas, que só fazem estabelecer regras e defender seu corporativismo.
        Stanley Kubrick filmou o roteiro com um realismo desconcertante. Rodado em um sombrio branco e preto, em Shepperton, nos arredores de Londres, Dr. Fantástico é uma peça visual impecável. Não tem atmosfera de comédia, mas sim de um filme circunspecto. É assustador! As palhaçadas e absurdos que presenciamos, pronunciadas com seriedade, chegam a causar arrepios na espinha. Kubrick construiu uma Sala de Guerra imensa, repleta de painéis eletrônicos, com uma gigantesca mesa circular, que se tornou referência para todas as demais salas militares que o cinema nos apresentou desde então. Construiu um bombardeiro B-52 cenográfico tão realista, como nunca mais se viu nos filmes. Fez sátira e comédia, mas fez questão de mostrar que catástrofe nuclear é coisa séria demais para ficar só na brincadeira.
        Stanley Kubrick chegou a filmar uma cena inteira para o final de Dr. Fantástico, mas acabou por eliminá-la do corte final. Registrou uma ridícula guerra de tortas em plena Sala de Guerra, deflagrada por todos os personagens. A cena era hilariante, como num autêntico pastelão, mas o diretor se deu conta de que ela não cabia na mensagem que estava tentando passar. Guerra nuclear está em um outro nível de palhaçada!

Resenha crítica do filme Dr. Fantástico

Ano de produção: 1964
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick e Terry Southern
Elenco: Peter Sellers, George C. Scott, Sterling Hayden, Keenan Wynn, Jack Creley, Slim Pickens, Peter Bull, James Earl Jones, Tracy Reed e Shane Rimmer

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