Barry Lyndon: a trajetória de um anti-herói que beira o abjeto

Cena do filme Barry Lyndon
Barry Lyndon: direção de Stanley Kubrick

UM FILME PARA SER VISTO E OUVIDO

Depois de Laranja Mecânica, Stanley Kubrick trouxe ao mundo Barry Lyndon, filme que ele escreveu e dirigiu em 1975. Muitos cinéfilos costumam lembrar dessa obra por seu visual deslumbrante, criado a partir de um notável esforço técnico, que mobilizou fotógrafos, iluminadores e alguns dos maiores especialistas e equipamentos óticos, para capturar tão somente a luz natural e a obtida com a ajuda de velas e candelabros. Assistir a esse filme, porém, é um exercício que ultrapassa as fronteiras do campo visual; fortalece a nossa musculatura narrativa e a nossa compreensão da linguagem cinematográfica.
        Barry Lyndon é, certamente, um dos mais belos filmes já realizados, mas também se abre para as feiuras de um protagonista que beira o abjeto; ambicioso, ingênuo e determinado a cultivar sua ignorância, ele se põe em movimento apenas para alcançar a riqueza e ascender de posição social. Ao se lembrar das estampas vistosas e elegantes de Ryan O'Neal e Marisa Berenson, que atuam nos papéis principais, o leitor pode achar que exagero ao falar em feiuras, porém, elas estão lá, para além das epidermes. Se o personagem principal irradia charme, coragem e determinação, ele também deixa que suas vaidades e o seu ímpeto violento o conduzam na direção do infortúnio e causem infelicidade a todos que invadem seu convívio.
        O filme é baseado no romance As Memórias de Barry Lyndon, escrito em 1844 pelo britânico William Makepeace Thackeray. A obra pode ser incluída no gênero picaresco, originado na Espanha e popularizado na Europa dos séculos XVII e XVIII, que parodiava os romances renascentistas; geralmente em tom de sátira, tais romances contavam as aventuras de anti-heróis trapaceiros e impostores, que transitavam entre o mundo dos nobres endinheirados e o dos pobretões enjeitados. Thackeray nos conta aqui a trajetória épica de Redmond Barry, um membro da pequena nobreza irlandesa, determinado a ingressar para a aristocracia inglesa. Num texto elegante e bem-humorado, o autor usa a narrativa em primeira pessoa para ressaltar o cinismo e a canalhice de um protagonista nada confiável.
        Stanley Kubrick era admirador da obra de Thackeray – especialmente do romance Feira das Vaidades, sua obra-prima escrita em 1848 –, porém preferiu adaptar Barry Lyndon, que jugou mais fácil de ser realizado como filme. O diretor, no entanto, não o enxergou como uma comédia picaresca; preferiu tratá-lo como um drama de alcance histórico, dividindo seu filme em duas partes bem distintas. Antes de seguir, é melhor examinar como ficou a sinopse:
        Barry Lyndon se passa na metade no século XVIII e conta a história do jovem e pedante Redmond Barry (Ryan O'Neal). Na primeira parte do filme ele se envolve com uma prima comprometida e acaba ferindo seu noivo num duelo. Para evitar complicações, abandona a família e vai para Dublim. Sem meios de sobrevivência, decide ingressar no exército britânico e depois de participar de algumas batalhas na guerra dos sete anos, torna-se um espião; é quando descobre um modo de penetrar na aristocracia: seduz a endinheirada Lady Lyndon (Marisa Berenson) e vira seu amante. Acontece que a bela senhora está a ponto de se tornar viúva e quando isso acontece, os dois se casam imediatamente. É quando Barry adota o sobrenome Lyndon. Na segunda parte do filme, assistimos ao declínio do protagonista. Agora um aristocrata, Barry Lyndon está metido em pesadas dívidas e se dedica a trair sistematicamente sua mulher. Traz sua mãe para ajudá-lo a administrar os negócios da família e se envolve em uma disputa potencialmente mortal com seu enteado, o que poderá levá-lo à ruína.
        É interessante observar como Stanley Kubrick abandonou a narrativa em primeira pessoa usada no livro, mas utilizou uma narração em off, feita pelo ator Michael Hordern, que nos evoca um narrador onisciente. Isso foi decisivo para que eliminasse qualquer tom cômico, enquanto assumia uma linguagem francamente dramática – além de não precisar se embrenhar em longas cenas com diálogos expositivos ou dramatizações históricas. O diretor então encontrou motivos de sobra para se esbaldar com os movimentos de câmera, com a mise-en-scène ritmada e com a cadência lenta das imagens exuberantes que enchem a tela. Seu cinema é eloquente para além das palavras: é puro discurso audiovisual.
        Para chegar a esse resultado, o roteiro escrito pelo próprio Stanley Kubrick precisou incluir algumas alterações na trama, a tornando mais objetiva e apropriada para caber nas três horas de duração do filme. Ainda assim, o sentido do romance permaneceu intacto, embora sua vocação de comédia romântica tenha sido podada. Não há suspense, nem melodrama! Em Barry Lyndon não nos deparamos com surpresas, apenas com a inevitabilidade dos efeitos decorrentes de causas conhecidas, que são claramente postas diante dos nossos olhos. O que nos comove é a trajetória de um homem pródigo em tomar decisões erradas, ainda que seja um genuíno homem da era do iluminismo e da razão.
        Por sorte, Stanley Kubrick foi um diretor pródigo em tomar decisões acertadas. Seu Barry Lyndon é um filme para ser degustado com atenção aos detalhes, embora os cinéfilos de hoje possam bocejar ao longo das suas cenas lentas e cadenciadas. Mas hão de se deliciar com a trilha sonora recheada com peças de Vivaldi, Bach, Paisiello, Mozart, Schubert e Handel – cuja Sarabande, da Suíte para Teclado em Ré menor (HWV 437), desponta como tema principal. Eis aqui um filme para ser visto e ouvido!

Resenha crítica do filme Barry Lyndon

Ano de produção: 1975
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick
Elenco: Ryan O'Neal. Marisa Berenson, Patrick Magee, Hardy Krüger, Gay Hamilton, Godfrey Quigley, Steven Berkoff, Marie Kean, Murray Melvin, Frank Middlemass, Leon Vitali, Dominic Savage, Leonard Rossiter, André Morell, Anthony Sharp, Philip Stone, David Morley, Diana Koerner, Arthur O'Sullivan, Billy Boyle, Jonathan Cecil, Peter Cellier, Geoffrey Chater, Wolf Kahler, Liam Redmond, Roger Booth, Ferdy Mayne, John Sharp, Pat Roach e Hans Meyer

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