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Mostrando postagens com o rótulo Baseado em Literatura

O Processo: crítica à burocracia opressora do sistema judiciário

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O Processo: direção de Orson Welles O DIRETOR DEIXA SUA INCONFUNDÍVEL MARCA AUTORAL Dia desses, num dos canais da TV por assinatura, assisti ao filme O Processo , realizado em 1962 por Orson Welles. Que grande oportunidade – eventos assim me animam a continuar como assinante! O longa-metragem é inspirado no romance homônimo de Franz Kafka, o escritor tcheco que se notabilizou por suas histórias repletas de conflitos psicológicos e costuradas com retalhos de realismo, delírios e originalidade. O filme segue na mesma linha. Emprega uma narrativa visual arrojada para destacar a natureza angustiante e descabida da história. Mas antes de falar de cinema, será preciso destrinchar um pouco mais a obra literária.           Publicado postumamente em 1925, O Processo é um livro perturbador. A obra é amplamente conhecida, consagrada como uma das mais importantes da literatura moderna. Conta a história de Josef K., um alto funcionário de um banco que é tirado da cama ...

O Milagre: ficção construída sobre fatos perturbadores

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O Milagre: direção de Sebastián Lelio CINEMA VISTOSO, DENSO E ENVOLVENTE Quem assistiu ao filme O Quarto de Jack , dirigido em 2015 por Lenny Abrahamson, certamente traz na memória as cenas tocantes sobre o relacionamento entre uma mãe e seu filho de cinco anos aprisionados num cativeiro, enquanto ela tenta se desdobrar em superação, para encontrar a saída que os leve a uma existência digna. Pois a escritora irlandesa Emma Donoghue, autora do romance e da sua adaptação para as telas, continua interessada no tema. Em sua nova empreitada, intitulada O Milagre , romance que virou filme em 2022 sob a direção do chileno Sebastián Lelio, ela volta a investigar os corredores apertados da maternidade e conta outra história fictícia. Esta se passa na sua Irlanda natal, nos idos de 1862 e envolve personagens inventados, mas inspirados em fatos impressionantes.           Antes de falar sobre O Milagre , será preciso contextualizar o seu enredo. Naquela época, a Irland...

O Pálido Olho Azul: ficção envolvente com final surpresa!

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O Pálido Olho Azul: direção de Scott Cooper AQUI, EDGAR ALLAN POE VIRA PERSONAGEM O diretor Scott Cooper diz preferir o formato de longa-metragem ao invés daquele estabelecido para as minisséries da TV. Minha tendência é concordar com ele, já que a objetividade de resolver tudo em duas horas se encaixa melhor na minha experiência cotidiana de cinéfilo. Mais demoradas, as séries demandam disciplina e um maior controle da ansiedade, enquanto esperamos a resolução da trama. Não sei se essa preferência do diretor foi o único motivo para que  O Pálido Olho Azul , de 2022, fosse realizado como filme, mas o fato é que o material no qual ele se baseou – o romance com o mesmo título escrito em 2009 por Louis Bayard – traz uma profusão de personagens e uma trama minuciosa o bastante para render uma minissérie inteira. E das boas!          Vamos começar pelo livro. Seu autor  tem no currículo alguns ótimos mistérios históricos, como Mr. Timoth...

O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford

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O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford: direção de Andrew Dominik UM DOS VISUAIS MAIS CAPRICHADOS DAS ÚLTIMAS DÉCADAS Certa vez me perguntei: como seria um western realizado por Stanley Kubrick? Um diretor minucioso como ele, obsessivo em alcançar a excelência visual e compenetrado em encontrar o tom certo das adaptações literárias que escolhia abraçar, certamente teria muito a acrescentar ao gênero. Quando assisti ao filme O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford , dirigido em 2007 por Andrew Dominik, compreendi a resposta: um bangue-bangue com a assinatura do mestre seria assim, denso, dramático e dedicado a investigar os personagens em profundidade. Exalaria uma atmosfera provocativa e imporia um cinema audacioso, mais interessado em declamar para além dos cânones recitados pelos grandes diretores do gênero. Exatamente como Dominik conseguiu realizar. Não que o diretor neozelandês tenha seguido à risca os passos de Kubrick. Ele tem personalidade própria e...

Blonde: uma biografia ficcional de Marilyn Monroe

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Blonde: direção de Andrew Dominik REFINAMENTO ARTÍSTICO BASEADO NUM ROMANCE FICCIONAL Minha geração já não viveu a intensidade do mito Marilyn Monroe. Quando passei a ter olhos para a sua sensualidade, a aura de símbolo sexual que a envolvia já estava desbotada – outras musas mais ousadas, mais modernas e mais desnudas já dominavam a mídia. Estranhamente, as duas palavras que via associadas ao nome daquela loira platinada eram vulgaridade e futilidade, talvez como resultado da iconografia que deixou como legado e de alguns  filmes tolos que exploravam sua estampa de mulher fatal – Quanto Mais Quente, Melhor e Os Homens Preferem as Louras são os únicos aos quais assisti. Sobre a vida dessa celebridade eternizada no panteão de Hollywood, sabia apenas que havia mantido um polêmico caso com o presidente americano John Kenedy, que fora casada com o famoso escritor e dramaturgo Arthur Miller e que cometera suicídio, depois de se entupir com barbitúricos na solidão do próprio quarto. ...

Bar Doce Lar: a jornada de amadurecimento de um aspirante a escritor

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Bar Doce Lar: direção de George Clooney UM LIVRO DE SUCESSO, TRATADO NAS TELAS COM REVERÊNCIA J. R. Moehringer é um jornalista e escritor premiado, com grande popularidade entre os americanos. Seu livro de memórias publicado em 2005, intitulado The Tender Bar , tornou-se um best-seller, arrebanhou uma legião de fãs e recebeu todos os elogios da mídia especializada. Desde então, uma adaptação para as telas era aguardada em Hollywood. Por fim ela chegou em 2021, com direção de George Clooney. Trata-se do filme Bar Doce Lar , estrelado por Ben Affleck e Tye Sheridan. Topei com ele no serviço de streaming e apertei o play por curiosidade, motivado pela curta sinopse apresentada na tela – não conhecia a história e fui capturado por um texto conciso, escrito com rara precisão nesses aplicativos.           Fiquei satisfeito! Bar Doce Lar traz uma história envolvente, terna e saborosa, apresentada como um drama de amadurecimento. Expõe a vida, desde a infância até...

Razão e Sensibilidade: filme encantador em todos os detalhes!

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Razão e Sensibilidade: direção de Ang Lee CINEMA DESLUMBRANTE O nome da escritora britânica Jane Austen figura entre os grandes clássicos da literatura em seu pais. Nascida em 1775, numa família pertencente à nobreza, ela se dedicou a retratar com certa ironia a vida da burguesia e seu cotidiano. Seus romances são protagonizados por mulheres, sempre às voltas com desilusões amorosas e dedicadas prioritariamente a alcançar um bom casamento. Apesar do ímpeto romântico e da atmosfera de inocência que respiramos em seus enredos, sempre há espaço para a crítica social. A autora também escancara a condição de dependência das mulheres no começo do Século XIX, o que causa um inevitável ponto de contato com o leitor moderno: muitas das atitudes passivas assumidas por suas personagens não cabem nos dias de hoje. Alguns comportamentos, no entanto, parecem querer gritar que ainda há muito o que ser conquistado pelo ser feminino.           O primeiro romance de Jane Aus...

Medo da Verdade: no final, um dilema moral se impõe

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Medo da Verdade: direção de Ben Affleck ROMANCE DENSO GANHA UMA ADAPTAÇÃO ENXUTA O que os filmes Sobre Meninos e Lobos, Ilha do Medo e Medo da Verdade têm em comum? Os três contam histórias gestadas na mente de Dennis Lehane, um dos escritores policiais mais festejados entre os americanos. Seus romances se dedicam a retratar uma certa atmosfera sombria que ele enxerga por sobre a cidade de Boston, sua terra natal – que ele esmiúça com certo bairrismo engajado. Dois de seus livros já haviam sido adaptados para as telas por cineastas de peso, como Clint Eastwood e Martin Scorsese. Agora é a vez de Bem Affleck experimentar as dificuldades de lidar com suas tramas investigativas densamente elaboradas e repletas de reviravoltas, que se tornaram marca registrada do escritor.           Medo da Verdade é um filme que desagua num dilema moral caudaloso, onde personagens complexos caminham sobre a linha que separa o certo do errado. Moral e ética são valores que ...

Ligações Perigosas: a versão de 1988 continua exuberante

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Ligações Perigosas: dirigido por Stephen Frears NUNCA É APENAS SOBRE GANHAR OU PERDER A obra-prima da literatura erótica do Século XVIII nos chegou pela pena de Pierre Choderlos de Laclos, que escreveu o romance epistolar intitulado Les Liaisons Dangereuses . O formato literário, onde a narrativa se dá por meio da transcrição de cartas trocadas entre os personagens, era bastante popular na época, mas aqui se mostrou especialmente oportuno! O leitor tem a sensação de penetrar na intimidade dos nobres ociosos e endinheirados, de compartilhar seus segredos e confissões, de fazer parte de suas conspirações. Quando foi lançado em 1782, o romance era tão escandaloso quanto impertinente, por fazer provocações em torno de questões morais e também por instigar a curiosidade dos enxeridos interessados em bisbilhotar a vida privada dos nobres, para acompanhar seus infames jogos de sedução de uma distância segura.           O romance rendeu várias adaptações para ...

À Espera dos Bárbaros: baseado no romance de J.M. Coetzee

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À Espera dos Bárbaros: filme dirigido por Ciro Guerra DIRETO DA LITERATURA PARA AS TELAS Nas páginas de um livro, uma história segue no ritmo ditado pelo leitor. O autor pode combinar as palavras e sugerir uma cadência na sonoridade que elas evocam. Também pode forçar a pontuação para impor as pausas e marcar a tomada de fôlego. Mas é na leitura que a obra se abre para interpretações. Já no cinema, esse pacote vem pronto. O ritmo é dado pela duração das imagens e dos sons, mas também pelos gestos dos atores, seus olhares, linguagem corporal, tom de voz, pronúncia... Lembro disso para destacar que, no filme, a criação coletiva acaba com a ditadura do autor, que perde o controle absoluto da sua história. John Maxwell Coetzee o escritor sul-africano ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2003, resistiu o quanto pôde e tentou segurar as rédeas da sua obra. Em À Espera dos Bárbaros , ele mesmo assina o roteiro para a adaptação do romance que escreveu em 1980, dirigida em 2019 pelo colomb...

Ataque dos Cães: entenda o significado do ponto de virada desse western sombrio

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Ataque dos Cães: filme dirigido por Jane Campion UM ESPETÁCULO AUDIOVISUAL REFINADO E FLUENTE Anualmente, com a temporada do Óscar a atiçar a sede por indicações, os serviços de streaming se animam a encher nossas telas com cinema de verdade. Ataque dos Cães , filme de 2021 escrito e dirigido pela cineasta neozelandesa Jane Campion é um filme e tanto. Um espetáculo audiovisual que nos traz um melodrama sólido, com narrativa fluente, atuações marcantes, uma temática envolvente e vocação para ensejar diferentes interpretações. Para formar uma opinião crítica a respeito dessa produção é preciso ponderar diferentes elementos. Primeiro, vamos falar da diretora.           Jane Campion tornou-se célebre depois que dirigiu o filme O Piano em 1993, o que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes – a primeira mulher a receber o prêmio – e o Óscar de melhor roteiro original. Credenciada como grife de cinema criativo e maduro, sua assinatura nos créditos é motivo suficient...

Dersu Uzala: poesia audiovisual de Akira Kurosawa

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Dersu Uzala: dirigido por Akira Kurosawa QUANDO O CINEMA GANHA EXPRESSÃO POÉTICA Em Curitiba, nos anos 1970, havia um grande portal que permitia viajar pelo espaço-tempo. Costumava usá-lo com rotineira frequência – praticamente todos os finais de semana. Era enorme, daqueles com um imenso saguão de entrada, plateia e primeiro balcão. Usava-o para acessar mundos distantes e épocas remotas, passadas e futuras. Como é da natureza dos portais, havia pouco o que reparar nele. Todas as atenções se voltavam para a janela que se abria e o crucial momento da travessia. Enquanto isso, as expectativas eram vencidas com a ajuda de um saquinho de pipocas ou uma caixinha de balas Mentex. Apesar de perceber pessoas ao meu redor, as jornadas nas quais embarcava eram sempre solitárias e de esforço pessoal. Ainda hoje me sinto conectado com aquele lugar. E nesse momento em que escrevo, tal conexão é real! Palpável. Consigo me ver sentado numa das poltronas vermelhas, com o olhar vidrado. Encantado! Com ...

O Cântico dos Nomes: uma ode imaginativa e original

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O Cântico dos Nomes: filme de François Girard UM DRAMA FICTÍCIO, AGARRADO NAS VERDADES SOBRE O HOLOCAUSTO Antes de mais nada é preciso deixar claro: O Cântico dos Nomes,  produção de 2019 dirigida pelo canadense François Girard, é um filme sobre o Holocausto. É um drama ficcional, com personagens inventados e situações imaginárias, mas transmite autenticidade e verossimilhança, a ponto de parecer inspirado em fatos. A produção é uma adaptação do romance com o mesmo título, escrito em 2002 pelo crítico musical britânico Norman Lebrecht, autor que conhece os bastidores do mundo da música erudita como poucos – ele mantém o blog de música clássica  Slipped Disc . A história que ele nos conta é comovente e combina um profundo respeito pela fé religiosa, pelos valores familiares e pela linguagem musical.           O Cântico dos Nomes conta a história de Martin Simmonds. Quando garoto, ganhou um irmão adotivo, o prodígio do violino Dovidl Rappaport, que...

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