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Mostrando postagens com o rótulo Baseado em Literatura

O Jardineiro Fiel: sobram dilemas éticos e morais

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O Jardineiro Fiel: direção de Fernando Meirelles AS BIG PHARMAS JÁ ESTAVAM NA BERLINDA! Dia desses, vasculhando a programação da TV por assinatura, deparei com o filme O Jardineiro Fiel , dirigido em 2005 por Fernando Meirelles. Atinei que havia assistido a esse filme uma única vez, à época do seu lançamento. Lembrava da trama e dos seus personagens, mas os detalhes narrativos já haviam me escapado. Que grande oportunidade! Revisitar um filme de qualidade e experimentar a mesma sensação de frescor do primeiro encontro é uma dádiva! Apertei o play e, lá pelo segundo ato, levei um susto!           – É sério? Quinze anos antes da epidemia do COVID19? – exclamei depois de fazer as contas.           Naquela época o filme já estava denunciando as tramoias entre a indústria farmacêutica e agentes estatais corruptos, para vender quantidades planetárias de vacinas e medicamentos sem um controle seguro dos seus efeitos colaterais e com margens de lucro obscenas. Com tamanho potencial explosivo,

O Processo: crítica à burocracia opressora do sistema judiciário

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O Processo: direção de Orson Welles O DIRETOR DEIXA SUA INCONFUNDÍVEL MARCA AUTORAL Dia desses, num dos canais da TV por assinatura, assisti ao filme O Processo , realizado em 1962 por Orson Welles. Que grande oportunidade – eventos assim me animam a continuar como assinante! O longa-metragem é inspirado no romance homônimo de Franz Kafka, o escritor tcheco que se notabilizou por suas histórias repletas de conflitos psicológicos e costuradas com retalhos de realismo, delírios e originalidade. O filme segue na mesma linha, empregando uma narrativa visual arrojada e envolvente, para destacar a natureza angustiante e descabida da história. Mas antes de falar de cinema, será preciso destrinchar um pouco mais a obra literária.           Publicado postumamente em 1925, O Processo é um livro perturbador. A obra é amplamente conhecida, consagrada como uma das mais importantes da literatura moderna. Conta a história de Josef K., um alto funcionário de um banco que é tirado da cama por oficiais

O Milagre: ficção construída sobre fatos perturbadores

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O Milagre: direção de Sebastián Lelio CINEMA VISTOSO, DENSO E ENVOLVENTE Quem assistiu ao filme O Quarto de Jack , dirigido em 2015 por Lenny Abrahamson, certamente traz na memória as cenas tocantes sobre o relacionamento entre uma mãe e seu filho de cinco anos aprisionados num cativeiro, enquanto ela tenta se desdobrar em superação, para encontrar a saída que os leve a uma existência digna. Pois a escritora irlandesa Emma Donoghue, autora do romance e da sua adaptação para as telas, continua interessada no tema. Em sua nova empreitada, intitulada O Milagre , romance que virou filme em 2022 sob a direção do chileno Sebastián Lelio, ela volta a investigar os corredores apertados da maternidade, contando uma outra história fictícia. Esta se passa na sua Irlanda natal, nos idos de 1862 e envolve personagens inventados, mas inspirados em fatos impressionantes.           Antes de falar sobre O Milagre , será preciso contextualizar o seu enredo. Naquela época, a Irlanda acabava de sair da Gr

O Pálido Olho Azul: ficção envolvente com final surpresa!

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O Pálido Olho Azul: direção de Scott Cooper AQUI, EDGAR ALLAN POE VIRA PERSONAGEM O diretor Scott Cooper diz preferir o formato de longa-metragem ao invés daquele estabelecido para as minisséries da TV. Tendo a concordar com ele, já que a objetividade de resolver tudo em duas horas se encaixa melhor na minha experiência cotidiana de cinéfilo. Mais demoradas, as séries demandam disciplina e um maior controle da ansiedade, enquanto esperamos a resolução da trama. Não sei se essa preferência do diretor foi o único motivo para que  O Pálido Olho Azul , de 2022, fosse realizado como filme, mas o fato é que o material no qual ele se baseou – o romance com o mesmo título escrito em 2009 por Louis Bayard – traz uma profusão de personagens e uma trama minuciosa o bastante para render uma minissérie inteira. E das boas!          Vamos começar falando do livro. Seu autor  tem no currículo alguns ótimos mistérios históricos, como Mr. Timothy e O Mistério da Torre Negra . Em  O Pálido Olho Azul ,

O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford

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O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford: direção de Andrew Dominik UM DOS VISUAIS MAIS CAPRICHADOS DAS ÚLTIMAS DÉCADAS Certa vez me perguntei: como seria um western realizado por Stanley Kubrick? Um diretor minucioso como ele, obsessivo em alcançar a excelência visual e compenetrado em encontrar o tom certo das adaptações literárias que escolhia abraçar, certamente teria muito a acrescentar ao gênero. Quando assisti ao filme O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford , dirigido em 2007 por Andrew Dominik, compreendi a resposta: um bangue-bangue com a assinatura do mestre seria assim, denso, dramático e dedicado a investigar os personagens em profundidade. Exalaria uma atmosfera provocativa e imporia um cinema audacioso, mais interessado em declamar para além dos cânones recitados pelos grandes diretores do gênero. Exatamente como Dominik conseguiu realizar. Não que o diretor neozelandês tenha seguido à risca os passos de Kubrick. Ele tem personalidade própria e

Blonde: uma biografia ficcional de Marilyn Monroe

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Blonde: direção de Andrew Dominik REFINAMENTO ARTÍSTICO BASEADO NUM ROMANCE FICCIONAL Minha geração já não viveu a intensidade do mito Marilyn Monroe. Quando passei a ter olhos para a sua sensualidade, a aura de símbolo sexual que a envolvia já estava desbotada – outras musas mais ousadas, mais modernas e mais desnudas já dominavam a mídia. Estranhamente, as duas palavras que via associadas ao nome daquela loira platinada eram vulgaridade e futilidade, talvez como resultado da iconografia que deixou como legado e de alguns  filmes tolos que exploravam sua estampa de mulher fatal – Quanto Mais Quente, Melhor e Os Homens Preferem as Louras são os únicos aos quais assisti. Sobre a vida dessa celebridade eternizada no panteão de Hollywood, sabia apenas que havia mantido um polêmico caso com o presidente americano John Kenedy, que fora casada com o famoso escritor e dramaturgo Arthur Miller e que cometera suicídio, entupindo-se com barbitúricos na solidão do próprio quarto.           Foi

Bar Doce Lar: a jornada de amadurecimento de um aspirante a escritor

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Bar Doce Lar: direção de George Clooney UM LIVRO DE SUCESSO, TRATADO NAS TELAS COM REVERÊNCIA J. R. Moehringer é um jornalista e escritor premiado, com grande popularidade entre os americanos. Seu livro de memórias publicado em 2005, intitulado The Tender Bar , tornou-se um best-seller, arrebanhou uma legião de fãs e recebeu todos os elogios da mídia especializada. Desde então, uma adaptação para as telas vinha sendo aguardada em Hollywood. Por fim ela chegou em 2021, com direção de George Clooney. Trata-se do filme Bar Doce Lar , estrelado por Ben Affleck e Tye Sheridan. Topei com ele no serviço de streaming e apertei o play por curiosidade, motivado pela curta sinopse apresentada na tela – não conhecia a história e fui capturado por um texto conciso, escrito com rara precisão nesses aplicativos.           Fiquei satisfeito! Bar Doce Lar traz uma história envolvente, terna e saborosa, apresentada como um drama de amadurecimento. Expõe a vida, desde a infância até a juventude, de um a

Razão e Sensibilidade: filme encantador em todos os detalhes!

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Razão e Sensibilidade: direção de Ang Lee CINEMA DESLUMBRANTE O nome da escritora britânica Jane Austen figura entre os grandes clássicos da literatura em seu pais. Nascida em 1775, numa família pertencente à nobreza, ela se dedicou a retratar com certa ironia a vida da burguesia e seu cotidiano. Seus romances são protagonizados por mulheres, sempre às voltas com desilusões amorosas e dedicadas prioritariamente a alcançar um bom casamento. Apesar do ímpeto romântico e da atmosfera de inocência que respiramos em seus enredos, sempre há espaço para a crítica social. A autora também escancara a condição de dependência das mulheres no começo do Século XIX, o que causa um inevitável ponto de contato com o leitor moderno: muitas das atitudes passivas assumidas por suas personagens não cabem nos dias de hoje. Alguns comportamentos, no entanto, parecem querer gritar que ainda há muito o que ser conquistado pelo ser feminino.           O primeiro romance de Jane Austen, Razão e Sensibilidade ,

Medo da Verdade: no final, um dilema moral se impõe

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Medo da Verdade: direção de Ben Affleck ROMANCE DENSO GANHA UMA ADAPTAÇÃO ENXUTA O que os filmes Sobre Meninos e Lobos, Ilha do Medo e Medo da Verdade têm em comum? Os três contam histórias gestadas na mente de Dennis Lehane, um dos escritores policiais mais festejados entre os americanos. Seus romances se dedicam a retratar uma certa atmosfera sombria que ele enxerga pairando sobre a cidade de Boston, sua terra natal – que ele esmiúça com certo bairrismo engajado. Dois de seus livros já haviam sido adaptados para as telas por cineastas de peso, como Clint Eastwood e Martin Scorsese. Agora é a vez de Bem Affleck experimentar as dificuldades de lidar com suas tramas investigativas densamente elaboradas e repletas de reviravoltas, que se tornaram marca registrada do escritor.           Medo da Verdade é um filme que desagua num dilema moral caudaloso, onde personagens complexos caminham sobre a linha que separa o certo do errado. Moral e ética são valores que alguns enxergam embaçado

Ligações Perigosas: a versão de 1988 continua exuberante

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Ligações Perigosas: dirigido por Stephen Frears NUNCA É APENAS SOBRE GANHAR OU PERDER A obra-prima da literatura erótica do Século XVIII nos chegou pela pena de Pierre Choderlos de Laclos, que escreveu o romance epistolar intitulado Les Liaisons Dangereuses . O formato literário, onde a narrativa se dá por meio da transcrição de cartas trocadas entre os personagens, era bastante popular na época, mas aqui se mostrou especialmente oportuno! O leitor tem a sensação de penetrar na intimidade dos nobres ociosos e endinheirados, de compartilhar seus segredos e confissões, de fazer parte de suas conspirações. Quando foi lançado em 1782, o romance era tão escandaloso quanto impertinente, por fazer provocações em torno de questões morais e também por instigar a curiosidade dos enxeridos e interessados em bisbilhotar a vida privada dos nobres, acompanhando de uma distância segura seus infames jogos de sedução.           O romance rendeu várias adaptações para as telas, mas a que motivou esta cr

À Espera dos Bárbaros: baseado no romance de J.M. Coetzee

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À Espera dos Bárbaros: filme dirigido por Ciro Guerra DIRETO DA LITERATURA PARA AS TELAS Nas páginas de um livro, uma história segue no ritmo ditado pelo leitor. O autor pode combinar as palavras, buscando uma sugestão de cadência na sonoridade que elas evocam. Também pode forçar a pontuação para impor as pausas e marcar a tomada de fôlego. Mas é na leitura que a obra se abre para interpretações. Já no cinema, esse pacote vem pronto. O ritmo é dado pela duração das imagens e dos sons, mas também pelos gestos dos atores, seus olhares, linguagem corporal, tom de voz, pronúncia... Lembro disso para destacar que, no filme, a criação coletiva acaba com a ditadura do autor, que perde o controle absoluto da sua história. John Maxwell Coetzee o escritor sul-africano ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2003, resistiu o quanto pôde, tentando segurar as rédeas da sua obra. Em À Espera dos Bárbaros , ele mesmo assina o roteiro para a adaptação do romance que escreveu em 1980, dirigida em 201

Ataque dos Cães: entenda o significado do ponto de virada desse western sombrio

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Ataque dos Cães: filme dirigido por Jane Campion UM ESPETÁCULO AUDIOVISUAL REFINADO E FLUENTE Então, com a próxima temporada do Óscar atiçando a sede por indicações, eis que os serviços de streaming se animam a encher nossas telas com cinema de verdade. Ataque dos Cães , filme de 2021 escrito e dirigido pela cineasta neozelandesa Jane Campion é um filme e tanto. Um espetáculo audiovisual que nos traz um melodrama sólido, com narrativa fluente, atuações marcantes, uma temática envolvente e vocação para ensejar diferentes interpretações. Para formar uma opinião crítica a respeito dessa produção é preciso ponderar diferentes elementos. Primeiro, vamos começar falando da diretora.           Jane Campion tornou-se célebre depois que dirigiu o filme O Piano em 1993, o que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes – a primeira mulher a receber o prêmio – e o Óscar de melhor roteiro original. Credenciada como grife de cinema criativo e maduro, sua assinatura nos créditos é motivo suficiente para d

Dersu Uzala: poesia audiovisual de Akira Kurosawa

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Dersu Uzala: dirigido por Akira Kurosawa QUANDO O CINEMA GANHA EXPRESSÃO POÉTICA Em Curitiba, nos anos 1970, havia um grande portal para o espaço-tempo. Costumava usá-lo com rotineira frequência – praticamente todos os finais de semana. Era enorme, daqueles com um imenso saguão de entrada, plateia e primeiro balcão. Usava-o para acessar mundos distantes e épocas remotas, passadas e futuras. Como é da natureza dos portais, havia pouco o que reparar nele. Todas as atenções se voltavam para a janela que se abria e o crucial momento da travessia. Enquanto isso, as expectativas eram vencidas com a ajuda de um saquinho de pipocas ou uma caixinha de balas Mentex. Apesar de perceber pessoas ao meu redor, as jornadas nas quais embarcava eram sempre solitárias e de esforço pessoal. Ainda hoje me sinto conectado com aquele lugar. E nesse momento em que escrevo, tal conexão é real! Palpável. Consigo me ver sentado numa das poltronas vermelhas, com o olhar vidrado. Encantado! Com a mente desconecta

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