O Irlandês: o DNA é de cinemão!

Cena do filme O Irlandês
O Irlandês: filme dirigido por Martin Scorsese

O MAGNETISMO DOS ATORES COMPENSA O MAU-CARATISMO DOS PERSONAGENS

Histórias sobre gângsteres são sempre violentas. Geralmente falam de personagens torpes, com sérios desvios de caráter. Invariavelmente narram trajetórias de ascensão e queda em busca de dinheiro e poder. Falam de traições, de rompantes passionais, de ambição desmedida... Curiosamente, histórias sobre gângsteres acabam centradas nos valores morais. Sim! Os criminosos que se organizam em gangues o fazem ao redor de estritos códigos de ética – ainda que uma ética enviesada, agarrada aos interesses mesquinhos de criminosos poderosos. Apesar de abjetas, algumas dessas histórias são tão surpreendentes que merecem ser contadas em filme. Mas quando seus personagens são asquerosos, o que faz um diretor criativo? Aposta tudo no carisma dos atores que vão interpretá-los! É isso que vemos no filme O Irlandês, filme de 2019 dirigido por Martin Scorsese.
        O filme nos traz a história verídica do sindicalista ligado ao crime organizado Frank Sheeran, o tal irlandês do título. Mas o elemento central da narrativa é o famoso líder sindical Jimmy Hoffa, o corrupto todo poderoso do sindicato dos caminhoneiros dos Estados Unidos e Canadá, que desapareceu em 1975. O mistério do seu sumiço sempre aguçou a curiosidade da mídia e do grande púbico, mas jamais foi solucionado – supunha-se que ele havia sido assassinado pela máfia. Até que em 2003, o irlandês à beira da morte confessou ter sido o autor do crime, a mando justamente da... máfia!
        A confissão de Frank Sheeran veio à tona por meio de Charles Brandt, em seu livro intitulado I Heard You Paint Houses, publicado em 2008. Advogado, ex-investigador e ex-promotor, Brandt extraiu a confissão de Sherran ao longo de entrevistas gravadas durante cinco anos e solucionou o mistério envolvendo Jimmy Hoffa. O título do livro, que numa tradução livre seria algo como “ouvi falar que você pinta casas” remonta a uma frase dita pelo famoso líder sindical quando foi apresentado ao irlandês. Seria uma alusão ao seu ofício de matar pessoas, quando o sangue da vítima respinga nas paredes da casa, feito tinta. O excelente livro de Charles Brandt foi um sucesso e tinha tudo para virar filme. E virou, com produção de Robert De Niro e direção de Martin Scorsese.
        No filme O Irlandês, Frank Sheeran (Robert De Niro) é um idoso numa casa de repouso. Ele relata sua história, sobre como se tornou um assassino a serviço da máfia depois de retornar da Segunda Guerra. Nos anos 1950 ele vai galgando postos até ser apresentado a Russel Bufalino (Joe Pesci), chefão de uma família criminosa, que por sua vez o apresenta a Jimmy Hoffa (Al Pacino). Depois de muitos serviços sujos realizados com sucesso, o irlandês se torna o principal guarda-costas de Hoffa e o segue ao longo de toda sua carreira sindical. O que acompanhamos então são os bastidores da corrupção e dos desmandos de políticos, sindicalistas e toda sorte de criminosos que se alvoraçam ao redor de qualquer monte de dinheiro público. Já sabemos qual será o final de Jimmy Hoffa e também as decisões que serão tomadas por Bufalino e Sheeran. Mas não sabemos os detalhes, que Martin Scorsese vai nos revelando em doses calculadas de suspense e tensão.
        O filme O Irlandês era um projeto bastante aguardado na indústria do cinema. Scorsese já vinha tentando viabilizá-lo há anos e quando a conjunção de forças positivas finalmente se deu, os atores estavam… velhos! Velhos, mas imbatíveis! O diretor bem que podia ter convocado bons atores para interpretar os personagens enquanto jovens, o que traria resultados mais artísticos e menos técnicos. Mas preferiu rejuvenescer digitalmente os craques que se envolveram de corpo e alma na produção. Conseguiu um carisma notável! O magnetismo do trio de protagonistas é absoluto em cena.
        A adaptação do livro de Charles Brandt para o cinema foi assinada por Steven Zaillian, um craque dos roteiros, que já levou quatro Óscares e escreveu filmes como A Lista de Schindler, Gangues de Nova Iorque, O Gângster, Hannibal e Missão Impossível. O roteiro final foi destilado depois de várias reuniões realizadas entre Scorsese, De Niro, Zallian e o próprio Charles Brandt.
        No livro, o que temos é uma biografia de Frank Sheeran, cobrindo todos os seus 83 anos de vida. Para o cinema, Steven Zaillian buscou se deter ao essencial – e isso já resultou em um filme com mais de três horas de duração! Ele conteve a ação principal ao longo de 20 anos, entre 1955 e 1975. A sacada foi usar uma longa viagem feita por Sheeran e Bufalino, entre a Filadélfia e Detroit, como elemento estrutural da narrativa.
        Para o filme O Irlandês, o roteirista também preferiu manter a narração feita pelo protagonista, que funciona muito bem no livro, mas enfraquece a dramatização no cinema, onde sempre é mais recomendável mostrar a ação do que simplesmente contar como ela aconteceu. O motivo foi justificado: o linguajar e os maneirismos de Sheeran, tão peculiar aos gângsteres, fazem dele o cicerone perfeito para conduzir o espectador por um universo que apenas poucos iniciados conhecem.
        Com um roteiro bem planejado, costurado como um jogo de flashbacks fluentes e linhas de diálogos abertas, que deram margem para que os atores pudessem improvisar em vários momentos, Martin Scorsese – que também dirigiu o excelente Taxi Driver – se esbaldou em mais um filme sobre gângsteres. O Irlandês é envolvente, tem jeito de cinemão e foi realizado com competência, na frente e por trás das câmeras. Com seus 210 minutos de duração, aguçou a curiosidade dos fãs: não seria melhor que virasse logo uma série? É uma boa pergunta!

Resenha crítica do filme O Irlandês

Título original: The Irishman
Ano de produção: 2019
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Steven Zaillian
Elenco: Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci, Harvey Keitel, Bobby Cannavale, Stephen Graham, Kathrine Narducci, Domenick Lombardozzi, Anna Paquin, Sebastian Maniscalco, Ray Romano, Jeremy Luke, Jesse Plemons, Stephanie Kurtzuba, Aleksa Palladino, India Ennenga, J.C. MacKenzie, Gary Basaraba, Jim Norton, Larry Romano, Jake Hoffman, Patrick Gallo, Barry Primus e Jack Huston

Leia também as crônicas sobre outros filmes dirigidos por Martin Scorsese:

Comentários

Confira também:

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo: nada importa, nem o cinema!

Siga a Crônica de Cinema