Os Vigaristas: uma comédia dramática envolvente

Os Vigaristas: filme de Ridley Scott
UM FILME REPLETO DE VIGARICES
Para iniciar minha crônica sobre o filme Os Vigaristas, dirigido em 2003 por Ridley Scott, pensei em duas abordagens distintas. A primeira tem relação com seu título original, Matchstick Men – numa tradução livre, algo como “homens palito de fósforo” –, que inglês é uma gíria para vigaristas ou amigos do alheio; há, porém, uma sutiliza: a sonoridade é bastante próxima à expressão Majestic Men – numa tradução livre, algo como “homens majestosos”. Um anglófono, portanto, entende que a estampa majestosa de um vigarista é parte integrante do seu ser, e que ela se desmanchará depois que a vítima tomar consciência de que foi tapeada; será apenas um inútil palito de fósforo carbonizado e deformado. Ou seja: só esse título original já fez rodar um filme inteiro na minha cabeça de cinéfilo ansioso.A segunda abordagem está relacionada com episódios reais que vivenciei. Lembro que minha mãe, quando já contava seus 75 anos, ligou-me aos prantos porque caíra no golpe do bilhete de loteria, aplicado por um insuspeito rapaz, em conluio com um sujeito de boa aparência. Convencida a sacar R$ 1 mil no caixa eletrônico, ela ficou plantada, com o dinheiro na mão (envolto em um lenço de pano), enquanto esperava a volta do tal rapaz, que fora buscar sabe-se lá Deus o que. Meia hora depois, decidiu conferir o dinheiro e ficou estarrecida: jamais entendeu como foi que o vigarista trocou as notas por pedaços de papel jornal; ficou indignada, depois desesperada e depois com raiva; sentiu-se humilhada, violentada, incompetente... Por semanas, sentiu-se uma completa idiota, até que o episódio virou mais um causo a ser contado com resignação.
Tempos depois, Ludy caminhava sozinha pelo bairro quando foi abordada por um insuspeito rapaz de boa aparência, que tinha na mão um bilhete de loteria premiado. Quando outro sujeito apareceu para costurar a narrativa, minha mulher exclamou:
– Ah, eu conheço esse golpe! Minha sogra caiu no mês passado!
Em questão de segundos os dois vigaristas evaporaram; cada um se apressou para um lado e sumiram pelas esquinas movimentadas. É claro que fiquei possesso quando Ludy chegou em casa e me contou como confrontou os vigaristas. Como minha mulher podia ter sido tão inconsequente? E se os dois sujeitos resolvessem partir para a ignorância, apelar para a violência...
– Bobagem! – retrucou Ludy – Esse tipo de gente não procura violência. Não se julgam ladrões. Acham que são artistas. Preferem dar uma de espertos.
E foi assim, com a cabeça fervilhando de noções preconcebidas, que comecei a assistir ao filme Os Vigaristas. Imediatamente reconheci os personagens – já frequentaram filmes de todos os gêneros e inspiraram os meliantes da vida real. Aqui, eles são Roy Walker (Nicolas Cage) e Frank (Sam Rockwell). Dedicam-se a tapear velhinhas incautas e aplicar pequenos golpes numa Los Angeles movimentada. O problema é que Roy é um neurótico e sofre de vários distúrbios compulsivos, combinados com agorafobia e pitadas de síndrome de Tourette. Fica sem os remédios que toma regularmente e perde o contato com o psiquiatra de quem costumava comprar as receitas; vê-se forçado a procurar outro médico e a retomar as sessões de terapia. Para complicar, surge em sua vida uma filha de 14 anos, Angela (Alison Lohman), de cuja existência suspeitava, mas que agora aparece materializada na sua casa, doce e encantadora, para atrapalhar sua vida de trambiqueiro.
É claro que Roy e Angela experimentarão a montanha russa emocional inevitável num relacionamento entre pai e filha que acabaram de se conhecer. É claro ele não terá outra alternativa senão iniciar a garota no mundo da vigarice e ensinar-lhe uma profissão lucrativa. É claro que você, leitor atento, já percebeu a semelhança com o enredo do clássico Lua de Papel, filme de 1973 dirigido por Peter Bogdanovich e estrelado por Ryan e Tatum O’Neal. Mas não se preocupe: Os Vigaristas conta uma história com desdobramentos diferentes e traz originalidade suficiente para garantir um bom entretenimento.
Ridley Scott é um cineasta competente: seu filme segue num ritmo impecável e recebe um tratamento audiovisual primoroso; concentra-se nos personagens, cria uma atmosfera envolvente de bom humor e, na medida em que a história se complica, encontra o fio da meada emocional para manter o espectador hipnotizado. O roteiro que ele filma é bem costurado; trata-se de uma adaptação feita por Ted Griffin, em parceira com seu irmão, Nicholas, do romance Os Vigaristas, escrito pelo americano Eric Garcia. O livro não oferece literatura de excelência – o autor, embora mostre domínio do tema para distrair o leitor com as minúcias dos trambiques, não consegue desenvolver os personagens a contento –, mas na tela, sua história ganhou estatura, com um final que consegue ser... edificante!
Um filme sobre vigaristas só podia nos chegar repleto de vigarices! A primeira delas é a própria atriz Alison Lohman, que na época já estava com 22 anos, mas conseguiu convencer no papel da menina vivaz e inconsequente. Outro truque bem-sucedido de Ridley Scott foi o de minimizar os tradicionais excessos de Nicolas Cage, um ator que às vezes tropeça na teatralidade e erra na escolha de alguns filmes em que atua; aqui ele entrega uma atuação convincente. Um terceiro truque do diretor foi o de deixar que as referências ao filme Lua de Papel distraiam o espectador, enquanto o conduz até às reviravoltas no último ato.
Os Vigaristas é um ótimo filme, por causa da intervenção de Ridley Scott. O diretor se rende ao sentimentalismo em alguns momentos, mas o contrapõe com toques de humor sutil; ainda assim, jamais deixa de ressaltar a tristeza que habita o interior de personagens que se esforçam para ser confiáveis, apenas para deixar de sê-lo no instante seguinte. Os vigaristas se valem da ganância e da arrogância de suas vítimas, mas não têm descanso: precisam ser mais espertos do que todos ao redor; ao se aproximar emocionalmente das suas presas, flertam com o perigo, por isso são obrigados a manter distância da descontração, do relaxamento, da felicidade...
Em bom português, um vigarista é aquele que passa um conto-do-vigário, uma história mentirosa e intrincada, mas verossímil, encenada por escroques com habilidades teatrais. Tradicionalmente, as histórias mais famosas eram protagonizadas por supostos emissários de algum vigário, que transitavam pelos vilarejos exalando a inocência da devoção religiosa; pediam para a vítima guardar provisoriamente um embrulho com uma grande quantia em dinheiro; pediam também alguns trocados, suficientes para que pudessem seguir viagem e resolver problemas urgentes. É claro que jamais voltariam. É claro que a dinheirama deixada sob a guarda do otário não passava de embuste. É claro que o tal vigário não tinha nada a ver com a trama... Será?
Resenha crítica do filme Os Vigaristas
Título original: Matchstick MenTítulo em Portugal: Amigos do Alheio
Ano de produção: 2003
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Ted Griffin e Nicholas Griffin
Elenco: Nicolas Cage, Sam Rockwell, Alison Lohman, Bruce Altman, Bruce McGill, Sheila Kelley, Beth Grant, Jerry Hauck, Steve Eastin e Melora Walters
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